O livro Laços de Família de Clarice Lispector foi publicado em 1960, e tem como tema central o processo de aprisionamento dos indivíduos através dos "laços de família", de sua prisão doméstica, de seu cotidiano, das formas de vida convencionais e estereotipadas que passa de geração para geração, submetendo-se as consciências e as vontades. Nesse livro consta o conto Feliz Aniversário, que conta sobre Dona Anita que está com a família toda reunida para comemorar os seus 89 anos de idade, no entanto, nenhum deles está ali por sentir afeto por ela ou porque haja algum entre eles, estão presente apenas por obrigação. O conto mostra uma visão desencantada e descrente dos tramites familiares, os laços de convenção e interesse que estão impregnados na precária união familiar através de uma família carioca de classe média.
O conto de Clarice tem como características a sonda dos mecanismos mais profundos da mente humana; a técnica “impressionista”; a forma narrativa é geralmente o discurso indireto livre; características físicas das personagens não são importantes por isso muitas nem nome apresentam; as ações só tem importância para ilustrar o psicológico; introdução da técnica do fluxo da consciência - quebra os limites espaço-temporal e o conceito de verossimilhança, fundindo presente e passado, realidade e desejo na mente dos personagens, cruzando vários eixos e planos narrativos sem ordem ou lógica aparente; presença da epifania (iluminação): aparentemente equilibradas e bem ajustadas, subitamente as personagens sentem um estranhamento frente a um fato banal da realidade. Nesse momento, mergulham num fluxo de consciência, do qual emergem sentindo-se diferentes em relação a si mesmas e ao mundo que as rodeia, esse desequilíbrio momentâneo por certo mudará sua vida definitivamente; suas principais personagens são mulheres, mas não se limitam ao espaço do ambiente familiar, pois Clarice visa atingir valores essenciais humanos e universais tais como a falsidade das relações humanas, o jogo das aparências, o esvaziamento do mundo familiar, as carências afetivas e as inseguranças delas decorrentes, a alienação, a condição da mulher, a coexistência dos contrastes, das ambigüidades, das contradições do ser; além disso, tem a fusão de prosa e poesia, com emprego de figuras de linguagem: metáforas, antíteses, paradoxos, símbolos e alegorias, aliterações e sinestesias;
A estória começa contando que tudo estava preparado para o encontro anual da família. Na casa de Zilda, a única filha que tinha condições de hospedar a mãe, as bolas coloridas espalhavam-se pela sala e o bolo confeitado enfeitava o centro da mesa. Na cabeceira, arrumada e perfumada com água de colônia para disfarçar o cheiro de guardado, estava Dona Anita, a matriarca e aniversariante que completava 89 anos.
Notavam-se com facilidade, as rixas entre as noras, as diferenças econômicas entre os irmãos, a educação diferente dos netos e bisnetos, os presentes inúteis, as conversas forçadas, a superficialidade, as aparências para manter os laços familiares e com isso a velha, sentada, impassível, se perguntava em seu monólogo interior como ela, tão forte, pudera gerar uma família tão medíocre. Cantaram parabéns atrapalhados, todos fingiam entusiasmos, incapazes de uma alegria verdadeira. E como se tivesse dispertando de um transe, quando volta à realidade depois de se dar conta de tudo, cospe não chão, envergonhando Zilda e impressionando o resto da família, esse momento de epifania faz com que caia a máscara da falsidade de todos deixando-os sem conseguir agir, antecipando assim o fim da festa.
Ao se despedirem alguém fala para a velha “até o ano que vem”, demonstrando que estar ali não passava de uma obrigação anual de todos. O trecho “sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma... Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério” revela a infelicidade que sente a velha, mais que mesmo assim resta continuar seguindo a vida, até a morte chegar.
Pode-se afirmar com toda certeza que o conto é muito irônico, a começar pelo título, já que, de feliz esse aniversário não tem absolutamente nada. Há um toque de perversidade implícito na velhice e na vida quando a rotina deixa de ser habitual para ser constante, parte da existência, somente se rompendo anualmente, no aniversário de Dona Anita. Clarice mostra os grandes conflitos do ser humano com muito lirismo, nos faz despertar simpatia para com a idosa, pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até não caber mais em si, e pelos sentimentos duros dela mesma, a repulsa.
Como ressalta o crítico Luis Costa Lima, “a linguagem de Lispector contém como que uma armadilha: a sua simplicidade enganosa, podendo dar ao leitor a impressão de uma planura sem fim, de uma superfície horizontal. Não se iluda o leitor: por trás dessa aparente simplicidade lingüística, muitas verdades dolorosas se escondem: toda a clareza tem seu reverso e mesmo na coisa comum podemos condensar perguntas que não se desejam.” Clarice não se preocupa em contar uma estória, o mais importante para ela são as impressões, como ela mesma disse: “os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”. Ou seja, podem-se tirar várias conclusões a partir de um texto dela, depende do leitor, porque ela nos indica o caminho e nos faz reconhecer na estória, a realidade.
O professor Teotônio Marques Filho diz que “O estilo de Clarice, pois, - que lembra Machado de Assis – é arrastado, anda devagar, porque a sua preocupação é desvendar a verdade subjacente em cada um, mascarada pela casca da rotina.”. E ela consegue fazer isso porque ela não é somente uma escritora, ela é uma “sentidora”, registrava em palavras aquilo que sentia.
Recomendo o livro Laços de Famíla a todos, em especial àqueles que gostam de conhecer a fundo a alma das pessoas, que gostam de ter uma experiência única, porque se tem uma palavra para descrever Clarice e seus livros é: única. Recomendo também a quem esta prestando vestibular e concurso porque é uma obra muito cobrada dela, além de ser extremamente prazerosa de ler ajudando a conhecer palavras novas que podem encrementar o vocabulário.
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, e chegou ao Brasil aos dois meses de idade, naturalizando-se brasileira posteriormente. Criou-se em Maceió e Recife, transferindo-se aos doze anos para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, trabalhou como jornalista e iniciou sua carreira literária. Em 1944 forma-se e publica o livro que escreveu durante o curso - Perto do Coração Selvagem surpreendendo a crítica e agradando ao público. Viveu muitos anos no exterior, em função do casamento com um diplomata brasileiro com quem teve dois filhos. Separada do marido e de volta ao Brasil, passou a morar no Rio de Janeiro. Em 1969 lança o romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, um de seus livros mais conhecidos. A Via Crucis publicado em 1974 levantou polêmica por seu alto caráter sexual, e por não ter sido considerado à altura dos outros trabalho de Clarice, a revista Veja e o Jornal do Brasil chegaram a chamar a obra de "lixo". Em 1976 foi convidada para representar o Brasil no Congresso Mundial de Bruxaria, na Colômbia. Claro que aceitou: afinal, sempre fora mística, supersticiosa, curiosa a respeito do sobrenatural, depois do congresso um título foi atribuído a Clarice “a grande bruxa da literatura brasileira”. Em novembro de 1977 soube que sofria de câncer generalizado no ovário. No mês seguinte, na véspera de seu aniversário, morria em plena atividade literária e gozando do prestígio de ser uma das mais importantes vozes da literatura brasileira da geração de 45. É um forte nome da literatura modernista brasileira intimista, pelo questionamento do ser, “estar-no-mundo”, a pesquisa do ser humano, resultando no romance introspectivo.
Maria Juliana Klein e Patrícia Mozer Sardinha, alunas do 3º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Carlos Maria Marchon.
rola
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